quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ciranda



Como que sem saber o ou para que fazer, escreve.
Bate nas teclas, cada uma a seu tempo, ouvindo uma música de composição de um amigo seu - ainda desconhecido por desventura ou incapacidade do destino -, cantada por um amigo do amigo - vale o mesmo comentário.
Bate nas teclas, cada uma a seu tempo, enquanto imagina se melhor seria que seu teclado deixasse de funcionar agora, enquanto pensa o que fazer com aquilo; fosse escrito à mão, amassaria a folha e pensaria depois.
Bate nas teclas, cada uma a seu tempo, como quem corre nas tardes de verão ao redor do grande carvalho no centro do parque e, sem pensar, tropeça. Mas que grande queda, diria um senhor de maior experiência que joga xadrez na mesa a alguns metros. Depois de limpar a poeira do joelho emocionalmente dilacerado, voltaria a bater nas teclas, porque toda queda é uma nova aventura, assim como todo fim é um novo começo.

Recomeça a escrever...

Era uma vez.
E era mesmo.
Agora já se derramou o leite e não resta outra opção senão buscar logo um pano e limpar a geladeira,
e o chão,
e todas as frutas e os vegetais que receberam a avalanche do líquido na [des]proteção oferecida pela sobgaveta.
A mulher escorrega e grita. Seu quadril fino quase quebrou... e está vermelho.
Comment tu es, madamme? pergunta Judith, a empregada gorda,
I'm fine, you idiot! grita Sofia, a mulher escorregadia.
Parece que as duas não se entendem bem. Mas não era da jurisdição do escritor que ele era dizer isso.
Judith, a empregada gorda, busca três panos para cobrir o chão enquanto, com um quarto, seca como pode o interior do eletrodoméstico já tão usado.
I think that I need a new fridge... pensa Sofia, a mulher escorregadia.
Na qualidade de escritor que lhe fora - ora por si mesmo, ora não - imposta, não entende bem se geladeiras são eletrodomésticos, mas é o que lhe soa de bom tom para evitar repetições.
Esta hora, chega Horácio, o marido, que dá um beijo demorado em Sofia, a esposa. E chega também Horácio, o patrão, que quer logo interrogar de Judith, a empregada gorda, o que está se passando na sua cozinha.
Ocorre-lhe uma dúvida de escritor: Esta hora poderia ser Nesta hora? Esta poderia ser essa? E nessa? Deveriam? Eu bem sei que nesta hora talvez soasse melhor, mas é que está certo assim mesmo; não vou interferir.
Findo o trabalho de Judith, a empregada gorda, com a geladeira, ela diz mon jour est fini. E vai para o seu quarto, descansar os tímpanos dos gritos que fora obrigada a ouvir de Horácio, o patrão, por conta do erro de Sofia, a mulher escorregadia, que não sabia nem mesmo tirar uma garrafa de leite da geladeira sem se preocupar com suas grandes e vermelhas unhas - postiças, via-se bem.
Terminou de anoitecer na casa e Sofia, a esposa, deitou-se, seguida por Horácio, o marido. Sofia, a esposa, escorregadia como era, pôs-se quase sem ser notada sobre Horácio, o marido, anunciando ali um pedido. Mas Horácio, o marido, patrão como era, não gostava muito de unhas postiças e, sim, de ter o que apertar nas noites chuvosas, em que seu barulho no quarto de serviço se fazia inaudível, começando logo após o início do sono de Sofia, a inocente.




Até que derramou-se realmente o leite, e fizeram-se todos em gritos estridentes.
Sofia, a mulher escorregadia, saiu pela porta da frente. Levava consigo a chave do carro e o cartão de crédito que não era ela quem pagaria. Nunca mais se ouviu falar dela, a não ser quando chegavam indícios de que ainda vivia nas contas de Horácio, o ex-marido, que agora era só patrão de Judith, a empregada gorda, para cujo quarto ele usava escapar nas noites chuvosas.



Como todo fim é um novo começo, ninguém sabe - nem ele, na qualidade de escritor -, mas Sofia, a mulher feliz, não usa mais unhas postiças e nem se preocupa tanto com sua dieta rica em frutas e vegetais e desprovida de carboidratos e açúcares. Abílio, o novo marido, disse que preferia-a assim. E ela também descobriu que prefere-se assim: cercada só de verdades.

Um comentário:

FêRusth disse...

Eu simplesmente amei esse texto!!!
Você deveria escrever mais desses...
são perfeitos!
Continue assim.
B-jus.