sábado, 24 de outubro de 2009

Azul



Tateou o solo com os pés, pela primeira vez descalços. O direito de início, depois o esquerdo. A textura da terra não a agradava. E o dia estava muito quente, como também o estava a estrada. Sentido o chão, deu o primeiro passo em direção ao fim. E então o segundo. E o terceiro. E assim por diante, sem parar, sem até. Enquanto caminhava, observava as árvores - com seus troncos espessos, altos, antigos; seus galhos que se ramificavam sobre as próprias ramificações, quase tão intrincadas quanto as da raiz; suas folhas verdes e brilhantes -, as flores - do campo e de todas as cores, misturadas aos dentes-de-leão que ela mal conhecia, a não ser por aquela viagem que fizera a um hotel fazenda com os tios, onde fora apresentada a tantas coisas -, os vizinhos do sítio que passavam a cavalo, em seus cavalos grandes, bonitos e, sobretudo, saudáveis.
Passava os olhos pelas imperfeições e pelas marcas de passos sobre as quais estava. A grama nascia aqui e ali no meio da estrada,vez ou outra amassada pelo rastro de um pneu. Aquele esquilo que deixou uma noz cair parecia querer acertar a cabeça dela, como se ponderasse consigo da estranheza daquele ser de longos cabelos loiros e cacheados que passava por ali. O grilo saltou de sua frente para o mais longe que conseguiu, temendo o tamanho de seus pés quentes, sujos e inconsequentes.
Inconsequência derivada não da vontade da menina, mas da imaturidade que os doze anos enjaulada em um apartamento lhe trouxeram. O medo de insetos vinha das alergias que tinha às picadas dos pernilongos nas noites de verão e o amor às plantas, das que via nos canteiros das ruas, muitas vezes mal cuidados. Não tinha sequer um vaso de flores ou um animal em casa.
Costumava, até os nove anos, pedir um cachorro à sua mãe, de uma raça que ela adorava, mas já nem se lembrava mais qual raça era. Desistira do cachorro e de qualquer outro animal que pudesse querer quando o pai lhe deu um peixe. Na verdade, era uma. A fêmea azul de uma espécie cujo nome não lhe interessava saber se perdeu depois que a menina, então com dez anos, deixara-a cair no ralo da pia, tentando trocar a água do aquário.
Desde então, acostumada à poeira escura dos asfaltos, aos sinais de trânsito, às buzinas, não imaginava outra realidade além daquela. E nem queria. Já havia se acomodado com a ideia de que a natureza era coisa para o livro de ciências da escola. Ideia que ela mesma havia inventado para curar a dor de não poder conviver com tudo aquilo de que tanto gostava.
Maravilhada com as lembranças que guardava da viagem com os tios, ela não hesitou em aceitar o convite dos avós para, agora que estava uma "mocinha", passar as férias de verão no sítio deles, a algumas dezenas de quilômetros da cidade onde morava com os pais. E agora lá estava ela: depois do mês inteiro agarrada à barra da saia da avó, na cozinha, finalmente tinha decidido deixar-se à própria vontade e saiu a caminhar sem rumo, só para ver todo aquele mundo que estava por ser descoberto por ela.
De repente, ela ouviu um grito; a voz era a da sua mãe e chamava pelo seu nome. A menina se virou e viu a última coisa que esperava naquele momento: a mãe, correndo com seu salto alto, que fazia finos buracos a cada passo. Mais que depressa, a menina olhou para o outro lado, para a estrada que estava a percorrer, para tudo que ainda se havia por descobrir atrás das curvas e montes que se desenhavam à sua frente.
Com uma lágrima despontando em cada olho, voltou, o mais devagar que pode, até a mãe. Recebeu dela um abraço e um sermão sobre como ela poderia adoecer com aqueles pés desprotegidos no chão, sobre os perigos que poderiam ter-lhe acometido na trajetória em que estava, sobre todas as coisas que lhe vieram à cabeça na hora. A menina, apática, foi guiada pela mão até a casa, onde tomou um banho quente e se vestiu com o mais impecável vestido azul que já se viu.
A mãe deixou-a ir à varanda da casa, perto da piscina, onde, só para contrariá-la, a menina se jogou. Sem a menor preocupação com o tecido nobre ou os sapatos limpos que trazia no corpo. Sem se importar com o penteado que a mãe gastara-se fazendo. Sem pensar que, apesar do que parecia, a piscina era funda demais para ela.

3 comentários:

FêRusth disse...

Perfeito! Você escreve contos muito bem! Continue assim.

Monique disse...

Você praticamente descreveu-me. Isso é assustador. Moro em apartamento, pedi um cachorro e ganhei uma tartaruga, pedi um cachorro e ganhei um passarinho, pedi um cachorro e ganhei um peixe. Então desisti antes que inventassem uma nova espécie com a qual presentear-me.
Embora eu não comente em todas as postagens, sempre leio todas. Estão cada vez melhores. Esta aqui me deixou permanentemente encantada.

Emanuel disse...

O que é bontio precisa receber elogios. MARAVILHOSO, ESTUPENDO, FORMIDÁVEL. Você conseguiu prender o meu foco até o fim da leitura. Nem uma linha a mais nem a menos, perfeito.
Parabéns. Fico feliz por seguir seu blog.