quinta-feira, 10 de maio de 2012

Memória.





Considerando as últimas notícias suas que me foram dadas, declaro:
venha sozinha, desarmada e de branco.
Você tem quatro dias.
Encontre-me.

A Morte



O papel amarelado de bordas irregulares foi se desfazendo no suor das mãos trepidantes, pesado como pedra, letal, latejando. O coração da menina correu-lhe do estômago à boca e pareceu gostar deste ir e vir. A atmosfera cristalizou e caiu sobre seus ombros finos, impedindo as pernas bambas de aguentar toda a pressão. Mais que imóvel, inerte; mais que pálida, crua; ainda mais que morta, derrotada. O corpo extenuado se desfez lentamente sobre os sapatos azuis e, no chão, Ana acabou-se em lágrimas.

Era manhã de domingo quando o pai, docemente, beijou-lhe a testa e saiu sem dizer para onde. Da janela, ela ainda pode vê-lo dar alguns passos e perder-se na branquidão do inverno. Esperou que ele voltasse, de joelhos na cama e com o queixo apoiado na janela, até a cerração se dissipar - o que pareceu-lhe um dia inteiro - e nada. Mais tarde, a mãe tentou explicar que o pai não voltaria porque, no céu, havia uma estrela sem brilho cujo lugar ele teve que ocupar. Então, quando já era noite, Ana viu uma estrela cadente e desejou que seu pai nunca passasse por isso por medo dele se machucar.

_Pega, Toby! Corre!
Era um poodle marrom como chocolate ao leite, com patinhas de espuma, que corria atrás da bolinha azul que a menina arremessava. Devolvia, calmamente, balançando o rabinho cortado e sorrindo com os olhinhos cor de graxa, só para que a brincadeira pudesse começar de novo.
_Ana?!
_Sim, mãe?
_O Toby...
A graxa, agora, corria nos olhos da menina que, desamparada, reconhecia ali a dor de não saber qual era o seu lugar no mundo. Sentia saudade.

"Foi na loja do mestre André que eu comprei um pianinho. Plim-plim-plim, um pianinho...", aiolé, aiolé, Ana dançava e cantava. Ia à casa da avó só para se divertir. Lá, o mundo era mais mágico, o açúcar era mais doce e as músicas de criança nunca eram infantis demais pra ela. A rosa e o cravo brigando ou não, o anel de vidro podia até se quebrar, em qualquer bosque que um anjo roubasse corações, a menina não ligaria. Mas, um dia, acabou. Como um livro que terminasse no meio, inexplicavelmente, a avó não poderia mais ser sua fuga da realidade, pois ela mesma já não a viveria. Foi então que Ana aprendeu a diferença entre cravos e rosas e acompanhou a mãe com um casal das flores à eternidade cimentada de sua avó.

Em algum momento da vida, há de se findar. A menina aprendera pelos anos que eles não voltam e, de repente, terminam. Todos os dias, lembrava das batalhas que perdera para o destino e pensava que eles (seus entes queridos) sabiam que estavam indo ao encontro da morte, impossível não saber quando se chega à hora de partir. Lembrava ainda que não temeram, que não pararam, que não renunciaram ao direito de viver até o encontro derradeiro. Agora, já sem a mãe que sempre a apoiara, sem as cantigas de roda, em coma, não queria abandonar o filho que era toda a razão atual de sua vida. Mas, mais que isso, não queria fraquejar em face da morte que já havia lhe tomado tanto. Secou o choro, levantou-se e seguiu pela névoa em que estava imersa. O vestido branco não a protegia do vento forte e ela tremia cada vez mais, os sapatos azuis eram seu único conforto no percurso desconhecido. Aos poucos, começou a perceber uma silhueta escura e foi se aproximando sabendo que era ela, a Morte. Surpreendeu-se, porém, quando o vulto correu em sua direção de braços abertos e agarrou-a de uma só vez.

_Pai?
_Sim, querida. Nós estávamos te esperando.

A paisagem começou a se tornar nítida, uma música tocava, mas a menina ainda não sabia de onde vinha. Ouviu um latido baixo e, aos seus pés, estavam Toby e sua bolinha azul. Ana percebeu, então, que a melodia era de um piano e encontrou a avó tocando-o pouco atrás do pai. Não podia acreditar. Preparara-se tanto para encarar a crueldade de seu destino sem saber que ele seria, na verdade, bom. Esforçando-se mais, ela viu que outra figura se aproximava. Era sua mãe, em um longo vestido preto, com um olhar gelado.

_Ana, minha filha...
_Mãe... Como isso é possível? Eu achei que estava vindo encontrar a própria Morte em carne e osso e, ao contrário, encontro vocês.
_A verdade, querida, é que eu sempre te acompanhei. Eu mesma, que te dei o direito de viver, estou aqui para tomá-lo de volta. Não há o que temer. Você sabe tão bem quanto qualquer um que, quando o destino começa a agir ao nosso redor, eu me torno mais atraente que a vida.
_Mas eu não posso morrer agora, mãe. Não! - e começou a correr. Os sapatos azuis perderam-se no meio da névoa, os olhos foram ficando pesados, o branco tão forte começou a escurecer e, então, Ana ouviu um barulho. "Beep". "Beep". "Beep".

_Ela está viva! Alguém!? Ela está viva!

Ana abriu os olhos com dificuldade graças à luz forte. Viu um homem de branco mexendo em aparelhos, pessoas passando para todos os lados. Havia um menino segurando sua mão esquerda e, atrás dele, um homem.

_Mamãe, nós te esperamos por quatro dias. Eu até fiz um desenho. - e entregou-lhe a folha em que se via um casal com uma criança. Ana deteve-se nos sapatos azuis da mulher no desenho e disse, mecanicamente:

_Meus pés estão frios. Quem são vocês?


Esse texto está concorrendo na 115ª edição Conto/História do Projeto Bloínquês. Quem sabe, né?!
O trecho em destaque no sexto parágrafo é de autoria de Patrícia Cornwello.

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